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Nota: curso Direitos dos Povos Indígenas e o Poder Judiciário – ENFAM – 22-25/8/19 – Cruzeiro do Sul/AC, Marechal Taumaturgo/AC e aldeia Apiwtxa/TI Kampa do Rio Amônia

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O curso sobre Direitos dos Povos Indígenas e o Poder Judiciário da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistradas/os (ENFAM) ocorreu de 22 a 25/8/19 entre Cruzeiro do Sul/AC e a aldeia Apiwtxa, localizada na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia. Para chegar à aldeia, saímos de Cruzeiro do Sul rumo a Marechal Taumaturgo em avião monomotor (1h sobrevoando a Floresta Amazônica em chamas), depois seguimos em canoas motorizadas por mais 4 horas no rio Amônia até chegar à aldeia Apiwtxa.

Na parte urbana do curso em Cruzeiro do Sul/AC tivemos as seguintes aulas (22/8/19):
– Os Povos Indígenas do Vale do Alto Juruá/AC, por Francisco da Silva Piyãko, Liderança Ashaninka no Acre;
– A Funai e o Direito Indígena, por Carolina Augusta de Mendonça Rodrigues, Procuradora Federal;
– Os Povos Indígenas sob o Olhar Antropológico, por Gustavo Hamilton de Sousa Menezes, Antropólogo;
– O Povo Ashaninka: aspectos gerais, por José Antonio Vieira Pimenta, Antropólogo;
– A tese do marco temporal e os direitos territoriais dos povos indígenas na jurisprudência do STF/STJ à luz do sistema interamericano de direitos humanos, por Célia Regina Ody Bernardes, Juíza Fedeal (TRF1); e
– O Direito e os Povos Indígenas no Acre: aspectos cíveis e penais, por Danniel Gustavo Bonfim Araújo da Silva, Juiz de Direito (TJAC).

Já em direção à aldeia Apiwtxa (23/8/19), a liderança ashaninka Benki Piyãko conduziu uma exposição dialogada para apresentar os projetos de sustentabilidade ambiental desenvolvidos no Centro Yorenka Ãtame (Saberes da Floresta), localizado em Marechal Thaumaturgo/AC.

Chegando na aldeia Apiwtxa (TI Kampa do Rio Amônia), as atividades pedagógicas se iniciaram com um diálogo intercultural sobre direito indígena mediado pelas lideranças indígenas Wewito Piyãko e Shãtsi Ashaninka, durante o qual ocorreu a exposição do Juiz Federal Jair Araújo Facundes (TRF1) sobre Direito e Diversidade Cultural no Acre (uso tradicional, religioso e ritualístico da ayahuasca pelos Ashaninka e outros povos indígenas), na qual abordou os conhecimentos medicinais dos povos indígenas com o uso de raízes e ervas, diferenciando-os das categorias conceituais de religião e ciência utilizadas pelas sociedades ditas “ocidentais”, trazendo ao debate a Convenção da ONU sobre Diversidade Cultural, em harmonia com o artigo 225 da Constituição da República de 1988.

A noite terminou com o ritual do Kamarãpi, em que tivemos o privilégio de ouvir o sofisticado canto coral dos Ashaninka, em que belíssimos cantos são entoados sem acompanhamento de quaisquer instrumentos musicais e têm finalidade religiosa e também medicinal/curativa.

No último dia de atividades pedagógicas (24/8/19), a formadora da Enfam e pesquisadora do Grupo Moitará (MESPT/UnB), Andréa Brasil, iniciou os trabalhos coordenando a apresentação dos projetos de sustentabilidade e atividades na aldeia Apiwtxa, oportunidade em que as/os cursistas trocaram experiências/saberes em diálogo intercultural durante as seguintes atividades: (1) visita à escola indígena para compreender seu projeto político-pedagógico (Wewito Piyãko); (2) lançar um olhar sobre a arte da tecelagem das mulheres Ashaninka, que envolve histórias mitológicas, saberes ecológicos e conhecimentos minuciosos transmitidos de geração em geração, em visita à cooperativa (Shãtsi e Dora Ashaninka); (3) conhecer o sistema agroflorestal para compreender a reconstrução/manutenção/proteção da biodiversidade (Benki Piyãko); (4) observar as práticas sustentáveis de manejo na criação de quelônios/tracajás (Moisés Piyãko); (5) compreender como os Ashaninka lidam com a roça (base alimentar) e o manejo com peixe, perfazendo um uso sustentável dos recursos naturais (Kamayari Ashaninka).

Mais tarde, as/os cursistas se dedicaram a um estudo de caso sobre Crime e costume na sociedade multicultural, ocasião em que discutimos questões envolvendo dois institutos de vanguarda no direito dos povos indígenas, quais sejam, a consulta livre, prévia e informada (em processos penais, novidade no sistema de justiça brasileiro introduzida pela recente Resolução CNJ 287/19) e o pluralismo jurídico/diálogo intercultural entre sistemas de justiça coexistentes na sociedade pluriétnica. Para introduzir os mais relevantes elementos para a reflexão das/os cursistas, o Procurador Regional da República da 1ª Região, Felício Pontes Júnior, nos trouxe luzes sobre o tema Consulta Prévia: aspectos complexos. A apresentação dos grupos em plenária e debate das questões foi mediado por Felício Pontes, Célia Bernardes, os antropólogos Gustavo Menezes e José Pimenta, bem como pelas lideranças indígenas do povo Ashaninka.

As atividades pedagógicas se encerraram com uma “mesa-redonda” sobre O Judiciário e o Direito Indígena: Desafios e Perspectivas coordenada pela Desembargadora Federal Daniele Maranhão Costa (TRF1 – 3ª Seção), da qual participaram, expondo suas experiências jurisdicionais com processos envolvendo direitos dos povos indígenas, as/os juízas/es:
– Carolline ScofieldAmaral (TRF3/SSJ Ponta Porã/MS);
– Danila Gonçalves de Almeida (TRF1/SSJ Barra do Garças/MT);
– Eduardo de Assis Ribeiro Filho (TRF1/SSJ Gurupi/TO);
– Letícia Daniele Bossonario (TRF1/SSJ Ilhéus/BA); e
– Marcelo Lima de Oliveira (TJRR/2ª Vara da Infância e Juventude).

O curso foi encerrado pela liderança indígena Moisés Piyãnko, que discorreu com toda a altivez e sabedoria, tão próprias dos representantes políticos e religiosos de seu povo, sobre as várias situações de discriminação e de violação de direitos que ainda sofrem os Ashaninka e que seguem sendo praticadas tanto pelo Estado brasileiro, por ação bem como por omissão, quanto por particulares.

Depois disso, pudemos participar da festa do piyarentsi, em que nos foi oferecido o pyarentsi, tb conhecido como caiçuma, bebida tradicional fermentada e levemente alcoólica preparada a partir de mandioca e batata doce pelo povo Ashaninka para esse tipo de comemoração.

Nós, magistradas e magistrados brasileiros, ouvimos do povo Ashaninka, com tristeza e consternação, que as violações de direitos dos povos indígenas passam pela dificuldade/impossibilidade de as mães e os pais registrarem suas filhas e filhos com os nomes que escolheram; pelo impedimento, por parte de agentes do Estado brasileiro, de usarem suas roupas e adereços tradicionais, inclusive com a abominável destruição, travestida da mais imprestável repressão criminal, por agentes públicos, de objetos de uso tradicional e religioso; e, por fim, chegam à invasão de seu território tradicional por não indígenas motivados pela exploração de suas riquezas naturais (caça, pesca, madeira). Apesar de toda a iniquidade e perversidade do sofrimento que há séculos infligimos aos povos indígenas com as políticas genocidas/etnocidas implementadas pelo Estado brasileiro, acreditamos que o diálogo intercultural entre indígenas e profissionais do sistema de justiça propiciado pelo curso que acabamos de realizar se anuncia como uma possibilidade de estabelecer espaços de interlocução em que se articulem os conhecimentos relacionados ao direito formal e à tradição privatista com as visões de mundo, sistemas de conhecimento e modos de vida indígenas. Espera-se que, ao final do curso, as magistradas e os magistrados brasileiros estejamos mais conscientes do papel do Poder Judiciário na garantia dos direitos fundamentais titularizados pelos povos indígenas e melhor capacitados/as para decidir as questões veiculadas nos processos judiciais a partir de uma prática dialógica que articule o direito formal e as especificidades das diversas culturas indígenas.

 

Autoras: Andréa Brasil e Célia Bernardes,
Formadoras da Enfam.